sábado, 21 de agosto de 2010

Teatro brasileiro sofre xenofobia em Londres

Foto da peça "Doce Outono", da Cia. Teatro da Curva - conferida pelo blog ano passado em Sampa



SOBRE O OCORRIDO EM LONDRES
Queridos amigos,



Há aproximadamente 6 meses, a nossa Companhia – Teatro da Curva – recebeu um convite do Camden Fringe Festival, de Londres, para apresentar o espetáculo “Otimismo”, de Voltaire, adaptação de Ralph Maizza. Estreamos esse espetáculo em 2008 e ao longo de 2 anos fizemos 3 temporadas. Esse convite representou a expansão e coroação de um espetáculo realizado com poucos recursos, mas com muita dedicação, profissionalismo e amor. Durante esses 6 meses, trabalhamos continuamente e intensamente no levantamento de recursos afim de financiar a nossa viagem, visto que não haveria remuneração financeira, e sim apenas o intercâmbio cultural. Levantamos a verba necessária e adaptamos o nosso espetáculo para atender às necessidades do público inglês, de forma a proporcionar uma ampla compreensão do texto encenado, sem que o mesmo perdesse a sua essência.


Enfim, reunimos toda a documentação necessária de acordo com a legislação da imigração inglesa e seguindo orientação do Festival, que inclusive nos enviou uma carta convite, constando o nome de todos os envolvidos, para que a mesma fosse apresentada na imigração. Nos endividamos, recebemos o apoio de amigos, familiares e classe artística, e embarcamos rumo à concretização dos nossos sonhos e expectativas. Após uma longa viagem de 12 horas, chegamos cansados, porém muito empolgados e felizes, em solo inglês. Num primeiro momento, fomos recebidos cordialmente pelos agentes da imigração inglesa. Apresentamos todos os documentos necessários, demos as devidas explicações e fomos sinceros e claros quanto aos nossos objetivos em território inglês. Entregamos ao oficial nossos passaportes, a carta convite, as passagens de ida e de volta, o endereço no qual ficaríamos hospedados com carta de acomodação e informamos o quanto possuíamos em libras, quantia essa mais do que suficiente para bancar a nossa permanência em Londres durante os 10 dias de viagem.


Enquanto o oficial da imigração checava toda a documentação apresentada, fomos conduzidos a outra sala, onde nos revistaram e também as nossas bagagens, tudo de maneira cordial, porém, com algumas perguntas evasivas e atitudes invasivas (como, por exemplo, pedir para traduzir a carta de “boa viagem” da mãe de um dos atores, entre outras violações). Após 5 horas de espera, sendo ludibriados pelos oficiais da imigração, que nos diziam tudo aquilo se tratar de procedimento padrão para que pudéssemos entrar em território inglês, fomos comunicados da nossa inadmissão naquele país. A imigração alegou que não poderíamos entrar, pois não se tratava de um festival que possuía registro oficial e, portanto, o mesmo não tinha o direito de nos convidar.


Sendo assim, necessitávamos de um visto de trabalho. No entanto, segundo cláusula do site de imigração londrina (no qual não consta a lista de registro dos Festivais Oficiais), é permitida a entrada no país de turistas e artistas para mostrarem o seu trabalho temporariamente, num período de 10 dias, não necessitando do visto de trabalho, já que não há remuneração. Mesmo sem o direito da palavra, dissemos isso ao oficial da imigração que, com muito cinismo e prepotência, nos replicou que poderíamos entrar como turistas, porém não naquele dia e, se quiséssemos, poderíamos voltar no dia seguinte. Ainda assim, manifestações, e pessoas do festival estavam no aeroporto tentando falar com a imigração para confirmar a veracidade das nossas informações, a falha de um documento complementar por parte do festival, bem como explicar que a nossa situação era completamente legal. A imigração, com seu radicalismo e xenofobia, não permitiu que essa comunicação fosse efetuada. A partir desse momento, a cordialidade dos oficiais ingleses transformou-se em uma hostilidade injusta e inadequada, já que estavam lidando com artistas (turistas) com documentação legal, que não haviam cometido nenhum delito. Digitais (mãos inteiras) e fotos foram tiradas de todos, e o direito de réplica nos foi negado de maneira estúpida e ameaçadora. Nos revistaram novamente, mas dessa vez de maneira agressiva. Nenhuma explicação.


Agentes da segurança foram chamados para impedir qualquer manifestação da nossa parte, que apenas desejava conversar e entender o ocorrido. O pedido de tomar banho, trocar de roupas ou mesmo de fumar um cigarro foi negado rudemente, bem como a comunicação com a nossa produtora local. Os celulares foram apreendidos para que não tirássemos fotos. Em seguida, fomos escoltados por um grupo de seguranças até o momento de entrada no avião, cuidando para que não abríssemos as bagagens. Nos cercaram na zona de embarque na frente de todos os passageiros, até que os mesmos entrassem no avião. Nos sentimos envergonhados e acuados, e enquanto embarcávamos de volta, os seguranças ingleses nos davam um “tchauzinho” cínico e um sorriso sarcástico.


É importante registrar o quanto foi saudosa a recepção da tripulação da TAM, assim como a reação dos passageiros à nossa volta, bem como a calma e solidariedade da Policia Federal ao chegarmos no Brasil. Com relação à falha da documentação complementar que não foi emitida pelo festival (registro), o grupo já está tomando as devidas providências. Vale ressaltar que tal falha do festival não tornava a nossa condição ilegal para que pudéssemos, de alguma forma, entrar em solo “shakespeareano”.


Escrevemos essa carta para o esclarecimento dos fatos, para que não haja dúvidas e tampouco distorções a respeito do ocorrido. Sobretudo, colocamos aqui que o objetivo não é o ressarcimento financeiro, e sim a expressão de nossa tristeza, indignação e sensação de impotência, visto que nos sentimos envergonhados sem termos feito nada de errado, bem como nos sentimos fracassados e humilhados sem termos falhado. Não é possível descrever o sentimento de rejeição e injustiça gratuita que experienciamos. No mais, acima de tudo, queremos fazer jus a nossa dignidade. Chegou a hora de lutarmos efetivamente contra a xenofobia, bem como reivindicar nossos direitos de cidadãos do mundo e artistas.


Abraço a todos,


Teatro da Curva


Celso Melez, Didio Perini, Flávia Tápias, Leandro D’Errico, Mariana Blanski, Ralph Maizza, Reynaldo Thomaz, Ricardo Gelli, Tadeu Pinheiro e Walter Figueiredo.
Palavra do blog: Cada vez mais a civilização anda de mãos dadas com a barbárie. Fiz questão de postar essa carta, primeiro, porque todos nós estamos sujeitos a esse tipo de procedimento da polícia inglesa que matou Jean Charles. Uma lástima. Segundo, sou dramaturgo e conferi ano passado no Espaço I dos Sátyros, na Praça Roosevelt, no coração de São Paulo, a ótima peça "Doce Outono", da Cia. Teatro da Curva. A peça é dividida em três episódios, cada um com duração de 20 minutos. Teatro na sua essência, sem cenário suntuoso nem figurinos espalhafatosos. O endereço do blog da companhia é teatrodacurva.blogspot.com Quem quiser prestar solidariedade é essa a hora. Beijos.

8 comentários:

  1. Que experiencia dolorosa, quando os paradigmas e preconceitos de mentes ingenuas, impedem a proliferação de uma expressão artística, de uma união de culturas e pontos de vista diferentes e ao mesmo tempo complementares. Lamentável!

    Parabéns, Paulo. Por utilizar o seu espaço para divulgar tal fato. Gostaria mesmo que esse acontecimento não fosse abafado, e servisse como um exemplo de injustiça não somente para com a classe artística, mas para com toda a sociedade humana.

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  2. Willyan, qualquer cidadão ou cidadã pode sofrer esse tipo de abuso, autoritarismo e preconceito.
    Então é preciso denunciar.
    Abração.

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  3. Paulo Jorge, meu amigo!
    Como você faz bem! Presta um grande serviço, publicando essa carta, divulgando o vergonhoso ocorrido. Ninguém pode se omitir, quando o preconceito campeia por aí...A xenofobia é uma forma horripilante de discriminação, de injustiça, de violência... É uma vergonha imensa!!! Terrível...
    Parabéns, amigo, por estar sempre envolvido com o bem!
    Admiro-o muito!
    Imenso abraço!!!

    PS-Vou agora mesmo ao blog teatrodacurva, para prestar solidariedade...

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  4. Bom demais tê-la aqui, Zélia.
    O pessoal não vai deixar barato essa barbárie protagonizada pela "civilização".
    Pelo que li irão acionar até o Itamaraty.
    Assim é que se exerce a cidadania.
    Agora, o fato em si é vergonhoso.
    Isso ocorre diariamente na Inglaterra e em diversos países do mundo.
    E é preciso dar um basta.
    Outra: é importante discernir terroristas de pessoas de bem como você, por exemplo.
    Obrigado pelo comentário e saiba também que lhe admiro muito como poetisa e pessoa.
    Abração, querida.

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  5. Ignorância travestida de prepotência. Atraso em relação ao que seja mínimo respeito humano. Mentalidade retrógrada, literalmente medieval, do tempo de príncipes e rainhas. Atraso cultural. Sim, atraso cultural, para desgosto de Shakespeare! Que primeiro mundo é esse?... Em quê?... O pior é que isso não acontece apenas lá: o grande violonista Guinga, brasileiro também, no ano passado foi espancado num aeroporto da Espanha... Tomaram-lhe o casaco, que apareceu depois numa lixeira. Sem o dinheiro...
    Você fez muito bem, Paulo, em publicar a carta. Chega de aceitar ser tratado como menos-valia e calar.

    Um abraço!!

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  6. A arte e a revolta só morreram com o último homem (Albert Camus)

    imenso abraço meu caro!

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  7. A sua indagação é perfeita, Nivaldete: "Que primeiro mundo é esse?".
    Todo dia esse tipo de preconceito, como o relatado no post, ocorre na Europa e nos EUA, especialmente contra latinos, africanos e asiáticos.
    Fico indignado com tudo isso.
    Seria romântico de minha parte sonhar com um mundo sem fronteiras?
    Abração, amiga.

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  8. Frase lapidar do mestre do existencialismo, Juan.
    Abração.

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