segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"Detetive", de Godard, investiga a alma humana


Vez ou outra, quando a preguiça permite, resenho ou critico um filme e publico neste Nariz de Defunto ou no Facebook, por meio de nota, principalmente quando a obra me chama a atenção. Foi assim ontem, noite de domingo vazia, com Detetive (Détective, Suiça/França, 1985), de Jean-Luc Godard. Não vou comentar sobre Godard, pois todos que acessam este blog sabem de quem se trata. Queria dizer que Detetive é um filme bem comportado de Godard, longe das provocações e das ousadias estéticas dos primeiros trabalhos dos anos 1960. Se afirmasse isso, estaria mentindo. O filme é um exercício metalinguistico do início ao fim. Produzido em 1985, mesmo ano do polêmico Je Vous Salue, Marie, Detetive, traz novidades, como a inclusão de som estereofônico, bem utilizado na exuberante trilha sonora com peças de Schubert, Wagner, Chopin, Liszt e do jazzista Ornette Coleman. Como foi concebida, a música marca as mudanças de textura das imagens e funciona quase como um personagem.

Com um roteiro construído a oito mãos (Alain Sarde, Anne-Marie Miéville, Jean-Luc Godard, Philippe Setbon), Godard brinca com alguns elementos do cinema noir e monta um verdadeiro quebra-cabeças envolvendo a investigação de um crime ocorrido dois anos antes num luxuoso hotel de Paris. As investigações estão a cargo de William Prospero (Laurent Terzieff), um ex-detetive do hotel, que não se conforma por não ter conseguido identificar o assassino de um personagem chamado Príncipe. Ele é auxiliado pelo sobrinho, o policial Neveau (Jean-Pierre Léaud) e sua namorada, Arielle (Aurelle Doazan). O detetive acredita que o assassino voltará ao local do crime. Por isso instalou uma câmera e acompanha toda a movimentação na rua em frente ao hotel. Vale salientar que já tínhamos o VHS em 1985.

Em Detetive, Godard investiga a complexidade da existência humana. Numa trama paralela, vários hóspedes são apresentados e passam a receber as atenções dos investigadores. Um velho mafioso (Alain Cuny), chamado por seus capangas de Príncipe (coincidentemente o mesmo nome do personagem assassinado no passado) está interessado nas ações do piloto Emile (Claude Brasseur), que chegou para cobrar uma dívida de Jim Fox-Warner (Johnny Hallyday), empresário do pugilista Tiger Jones (Stéphane Ferrara) que vai lutar nos próximos dias e também está no hotel. Interessada no dinheiro de Jim, Françoise (Nathalie Baye), a bela mulher de Emile, quer sua parte para abrir uma livraria. O atrapalhado Neveau não perde cada movimento desses hóspedes e ouve fragmentos de conversas que não permitem saber ao certo o que se passa. Para isso, assume-se maitre do restaurante.

Um detalhe comum a cada personagem é seu apego aos livros. As citações literárias são frequentes, como é comum nos filmes de Godard. William Prospero (o próprio nome remete ao personagem de A Tempestade), mergulha na obra de Shakespeare. Jim não tira do bolso uma edição de Lord Jim, de Joseph Conrad, mas não consegue avançar na leitura, recomendada por sua mãe. Sempre que se dispõe a ler, é interrompido pela chegada de um interlocutor. Françoise lê no restaurante, na cama, e empilha seus volumes na mesa de cabeceira. Françoise e Jim, apesar da disputa pelo dinheiro, se aproximam mais do que deveriam. Infeliz no casamento, com o marido sempre ausente por causa das frequentes viagens como piloto, Françoise acaba se envolvendo com o homem que lhe deve dinheiro. Ele próprio se desinteressa da luta que está organizando e pensa em ficar com a mulher. Mas nem tudo está ainda decidido e é nesse ponto que a trama policial traz reviravoltas, mas no fim das contas o criminoso é identificado e baleado.

Não obstante o uso abusivo de metalinguagem, Detetive não é um filme monótono ou cansativo. É um Godard "palatável" para quem não está acostumado com o cinema de autor do cineasta francês. Tecnicamente é bem realizado. A luz e a fotografia são impecáveis. As velhas tiradas filosóficas também estão lá. Abro parênteses para o elenco estelar, que ainda traz Julie Delpy adolescente e Emmanuelle Seigner (a atual senhora Roman Polanski). Recomendo este Godard detetivesco. Grande momento do cineasta odiado pela mediocridade.


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