segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A irreverência travestida de Kenga

Kenga anônima desfila no corredor da rua Vigário Bartolomeu
Há 27 carnavais elas atraem e distraem o folião natalense no Centro Histórico, proporcionando um show de deboche, irreverência e transgressão no domingo de carnaval. São assumidamente homossexuais, drag queens e travestis, que investem pesado no visual para participar do desfile que elege anualmente a Kenga do Ano. Mas há aquelas que preferem apenas circular pelas ruas Vigário Bartolomeu e Ulisses Caldas, onde fica montado o palco do concurso, sem se submeterem ao crivo dos jurados. Apenas desfilam no corredor da Vigário Bartolomeu por puro prazer exibicionista. Algumas já tomaram tristeza, hoje tomam alegria.


Logo nas primeiras horas da tarde do domingo de carnaval, ainda sob o sol implacável do verão natalense, as vedetes da festa começam a chegar “montadas” em saltos altos, fantasias, adereços, cílios postiços e seios fellinianos, arrancando olhares curiosos e admirados, risos e recebendo aplausos, apupos e “cantadas” do sexo masculino. A maioria ignora. Porque na psicologia de uma kenga bem resolvida, o momento único e raro do domingo de carnaval no Centro Histórico é para ser o trampolim da alegria, do bom humor e do glamour.


Como que transportadas do filme franco-italiano “A Gaiola das Loucas”, do diretor Edouard Molinaro, para a vida real, as Kengas confirmam todos os predicados do carnaval traduzidos em alegria, brilho, cor, irreverência e volúpia. A kenga é um mistério psicológico em sua transparente transgressão. Melhor: não há mistério algum. O ser humano é que perdeu a faculdade de aproximação às forças espontâneas. Algo que a psicanálise e a sociologia explicam nos livros. Termômetro da folia momesca no domingo de carnaval na Cidade dos Reis Magos, o desfile das Kengas mobiliza todas as classes sociais e faixas etárias. São milhares de natalenses que lotam as ruas Vigário Bartolomeu e Ulisses Caldas para admirar e cultuar as atrações da festa.


A intenção desde o início do evento é fortalecer e fixar a imagem de Natal como polo turístico, unindo a descontração daqueles que brincam o carnaval de forma espontânea e sem preconceitos, afora a expansão dos canais de participação ativa do folião natalense no intuito de contribuir culturalmente para a capital potiguar. A ideia do idealizador do desfile, o carnavalesco, restauranteur e produtor cultural, Lula Belmont, é de agregar as pessoas que gostam de uma folia mais irreverente no Centro Histórico na tentativa de revitalizar o carnaval de rua da Cidade Alta.


O evento que começou de forma despretensiosa em frente à antiga boate Broadway, na rua Felipe Camarão, em 1983, ganhou adeptos com o passar dos anos. Em 1984, o desfile passou para a confluência das ruas Vigário Bartolomeu e Ulisses Caldas, onde permanece até os dias de hoje. A estrutura de palco só veio tempos depois. Lula Belmont lembra que em tempos idos o desfile foi realizado até em cima de caminhões. Hoje a Prefeitura de Natal, por meio da Fundação Cultural Capitania das Artes, garante palco, som, luz e segurança para o evento ocorrer em toda sua complexa plenitude libertina.


O nome "kenga" surgiu de uma consulta aos frequentadores da Broadway. Ganhou a sugestão do produtor cultural Marcos Sá, logo acatada por Lula Belmont. Neste ano, o carnavalesco calcula número de foliões superior a 20 mil pessoas. A concentração teve início às 15 horas, animada pelo som da Banda das Kengas comandada pelo experiente maestro Neemias Lopes. O desfile propriamente dito começou às 18 horas.


Descoladas e bem-humoradas, as apresentadoras Jarita Night and Day e Divina Shakira fazem um show à parte. Tecem comentários airosos e desairosos sobre as concorrentes do concurso. Nada mais nada menos que burlesco. É de bom alvitre informar que a comissão julgadora não elege necessariamente a kenga mais bonita ou produzida, contudo a mais criativa ou, como se diz, no linguajar chulo, a mais “fuleira”. A Kenga 2010 receberá um kit de cosméticos e um prêmio no valor de R$ 200,00.


Há oito anos registrando o desfile, o fotógrafo e hedonista, Antonius Manso, considera as Kengas um marco sócio-cultural na folia de momo natalense. No pensamento de Delirius Criativus, como se auto-proclama o fotógrafo, o importante na vida é brilhar e ser feliz, seja na passarela da vida ou na da Vigário Bartolomeu. “A fantasia é a essência do carnaval. E o carnaval é a pura e, ao mesmo tempo, oculta fantasia do ser humano”, filosofa.


Desde os primórdios do desfile que o buffeteiro Fernando Mendes prestigia o evento, ele próprio caracterizado de kenga. Mas há cinco anos não se traveste. Alega que a idade pesou na decisão. A ampulheta do tempo indicou a hora dele parar. Deixar de prestigiar o desfile não deixa. Mesmo tendo pendurado a fantasia, comparece todo ano com a família e amigos para lembrar os bons tempos. “As Kengas movimentam e mobilizam o carnaval no Centro Histórico, atraindo o natalense e o turista”, resume.
Paulo Jorge Dumaresq

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